Por Jaime Sodré
Os elementos de matrizes africanas implementados, em especial, no
Brasil traduzem misto de afirmação e desafios diante de uma sociedade
que idealizava um país de características europeias, de “refino e
civilidade”. Entre os elementos de caracterização da contribuição
africana ao nosso “ser de brasilidade”, encontramos o Desfile de Afoxés
realizado em Salvador, na Bahia. Uma expressão carnavalesca, cujas
raízes estão aliadas à religiosidade afro-baiana.
Bem cultural que, como signo, no entender de Ednalva Queiroz,
historiadora, exige o correspondente suporte físico, “dimensão material
que serve de base para a comunicação de uma estrutura simbólica que lhe
dá sentido”. Ambiente onde os sujeitos atuam baseados em códigos, de
acordo com o que estabelece a Constituição Brasileira, na condição de
“referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos
fundadores da sociedade”.
Pelo seu valor, inclui-se essa manifestação cultural no Livro Especial
de Registro de Eventos e Celebrações como um ato de reconhecimento da
importância desse evento e da necessária preservação, na qualidade de um
acontecimento particular, peculiar, culturalmente atuante, de um
patrimônio essencial e identitário para a população do estado da
Bahia.
Conforme Magnair Barbosa, também historiadora, os registros a respeito
dos afoxés na Bahia datam do fim do século XIX, exatamente em 1895.
Afirmamos que essa notação vincula-se ao fato de alguns clubes negros já
apresentarem uma formatação carnavalesca, quando passam a “receber
postulações e visibilidade”.
Em sua definição clássica, o afoxé é uma manifestação carnavalesca,
“levado” pelo ritmo do “ijexá”, cadência percussiva típica dessa
entidade. Integram-se a essa expressão artístico-cultural os cânticos,
as indumentárias, os instrumentos musicais, além dos rituais sagrados
numa preparação para o desfile, ou seja, para que o cortejo ganhe as
ruas, sem problemas.
Olga Cacciatore acentua o caráter religioso do afoxé, “uma festa
realizada como obrigação pelos integrantes do candomblé”, hoje mais
flexível nesse item. Nina Rodrigues também se preocupou com o afoxé e
afirmava que o desfile dessas entidades era “reprodução da África
inculta que veio escravizada para o Brasil”, ligadas às práticas
”fetichistas” e mágico-religiosas africanas. Dizia, sem muita admiração:
“Candomblé de qualidade inferior”.
Por outro lado, o médico e antropólogo Nina, como testemunha
presencial, influenciado pelo cientificismo da ocasião, valorizava o
desfile da Embaixada Africana, mas depreciava os Pândegos da África,
que, segundo ele, “exibiam uma imagem inadequada para a Bahia”, estado
empenhado em “civilizar-se”. A Embaixada Africana, admirada pelo Mestre,
tinha para ele um valor superior.
Em um ambiente repressivo aos clubes africanos, eram os afoxés que
utilizavam as brechas possíveis, emergentes na pós-abolição, para as
exibições, sendo por vezes notificados pela elite e pela imprensa.
Inicialmente, a formatação pioneira do afoxé se constituía de arautos
(músicos anunciadores), guarda branca, rei e rainha, o famoso Babalotim
(boneco símbolo) e, bordado com fios de ouro sobre tecido de veludo, o
estandarte, acompanhado de guarda de honra. A charanga reunia músicos
que tocavam atabaques, com destaque especial para agogôs, xequerês e
afoxés.
Manuel Querino, um negro estudioso das contribuições africanas que
assim se expressara a respeito do desfile dos Pândegos da África no
carnaval de 1897, informava que o tema remetia à festa realizada em
janeiro em Lagos, na Nigéria, que se chamava Domurixá, a festa da
rainha, reafirmando e vinculando os elementos dessa entidade à realidade
africana.
Os clubes Embaixada Africana e Pândegos da África, chamados de afoxés,
possuíam organizações diferenciadas, considerados “os mais inteligentes
adaptados à civilização”. As festas carnavalescas da Bahia evidenciavam
os clubes organizados por africanos, negros, crioulos e mestiços. Nesses
anos, os clubes ricos e importantes foram Embaixada Africana e Filhos
da África, mas havia incontáveis grupos de africanos e os máscaras
negras isolados, dizia Nina Rodrigues.
No ano de 1902, os afoxés pediram licença à prefeitura de Salvador para
realizar um desfile, mas as autoridades negaram. Esse fato fora
debatido pela imprensa e a proibição traduzia um debate político e
racial na disputa por espaços entre a elite branca e os negros libertos.
O Jornal de Notícias reclamava: “A nossa polícia não se dignou ainda a
providenciar para que nas próximas festas carnavalescas a Bahia não
ofereça o triste espetáculo de outros anos...”. Dentro desse clima,
assim respondeu o senhor Chefe de Polícia e Segurança Pública, afirmando
que nenhum clube poderia sair às ruas sem autorização prévia da
polícia. Em sua portaria, ele notificava que “a exibição de clubes de
costumes africanos, candomblés” estava absolutamente proibida.
É de fundamental importância compreender o contexto conflituoso entre a
elite branca e a população negra, para entendermos as estratégias que
objetivavam a manutenção das tradições festivas negras. Os traços
excludentes não cessaram com a instalação da República, quando as
demarcações de privilégios para brancos e de proibições para negros se
mantiveram. As características da sociedade senhorial, visivelmente
excludente e até mesmo racista, perduravam na Bahia.
O carnaval iria instalar-se naquele estado às vésperas da República, em
1884, até quando nos dias precedentes à Quaresma se festejava o entrudo
português, que chegara à Bahia na primeira metade do século XVII. Um
“carnaval luso” objetivava “polir as manifestações populares”, medida
que pretendia excluir as manifestações lúdicas negras.
As práticas culturais negras eram tidas como “africanismos”, termo
carregado do estigma de ações perigosas e, por isso, reprimidas. Na
sociedade da época, os negros, com suas “africanidades”, isto é,
práticas e costumes festivos ou sociais, eram associados à imoralidade, à
pobreza e à subversão.
Apesar dessa visão distorcida, o afoxé tem o seu valor irrefutável como
um componente da criatividade artística, cultural e melódica
brasileira. O afoxé é uma marca sociocultural do negro na Bahia e fruto
de uma herança cultural dinâmica, em permanente processo de
transformação e ressignificação. Em um ritmo cadenciado do ijexá, o
Desfile do Afoxé pede passagem em uma reverência respeitosa aos Deuses
Africanos.
Filosofia do tambor
Definimos o afoxé como elemento primordial, cultural de base africana, a
que chamamos de “Filosofia do Tambor”. Além de desempenhar atributos
musicais lúdicos, o gênero não se limita a esse aspecto, sendo o
elemento que assegura a ideia da experimentação plena da “vida aqui e
agora”. Outro papel fundamental dos tambores é “convocar”, mediante
toques sagrados, os “Santos”. Acreditamos que nas sociedades onde, por
razões repressivas, entre as quais as de natureza religiosa, o tambor
não soara, viu-se florescer uma cultura tímida.
O “aqui é agora”, princípio filosófico desfrutado na sua integralidade,
é uma homenagem à vida plena, sem sabor de pecado e ao som do tambor,
mas exigiu enfrentamentos. O candomblé, nos seus primórdios, além de
contar com a atuação nos locais distantes, evitando a vigilância
repressiva, era e ainda é um centro gerador de uma musicalidade ritual,
estimulante, uma coreografia litúrgica especial, que ao final dos atos
celebratórios prosseguia com uma expressão de caráter lúdico-recreativo,
uma espécie de confraternização, chamada “batuque”.
Para verificar isso, basta recorrermos aos noticiários, em especial os
do jornal O Alabama, que, na época, notificando à polícia essas
manifestações, exigia providências contra “estas manifestações bárbaras”
e “imorais”. Ainda hoje alguns templos de candomblé realizam festas de
caráter recrea-
tivo, às quais muitos chamam de “jazzes”.
Assim é que, após a missa encomendada pela Sociedade Fiéis de São
Bartolomeu do Terreiro do Bogum, na Igreja de Nossa Senhora do Rosário
dos Pretos, depois dos voduns incorporarem em seus fiéis, eles são
recepcionados pelos toques do Sirê, no candomblé. Em seguida vêm a
feijoada e os musicais populares. Dessa forma, o religioso precede ao
lúdico ou recreativo.
É apoiado nessa necessidade de celebrar a vida em um espaço público que
o povo-de-santo vai ao carnaval, em forma de afoxé, sem perder o
vínculo religioso. Para tanto, essa organização necessita de elementos
coreográficos e musicais do candomblé, no que couber. Como instrumental,
o agogô ou o apito, detentores do andamento do seu ritmo básico, são
percutidos pelos “mais velhos”. Os tambores não podem ser os consagrados
nos templos: o Rum, o Rumpi e o Lé. Para isso, atabaques ou timbaus,
não sacralizados, são tocados preferencialmente por ogans, xicarongomas,
huntós ou alabés, pessoas ligadas ao candomblé.
Antigamente havia os instrumentos dos “afoxés femininos”, entre eles os
tambores, conduzidos pelas mulheres do Axé apertados às axilas, como os
“tambores falantes” africanos. Encourados com peles de carneiro, cabra e
até mesmo, na época, com “couro de cobra”, os tambores eram pintados de
branco e azul.
Hoje vemos os Filhos de Gandhy apresentarem a sua seção de clarins,
majestosa, utilizada inclusive para saudações durante a romaria,
similares às obrigações religiosas consagradas a Oxalá, nos terreiros.
Havia, inclusive, como integrantes da orquestra do afoxé, o xequerê,
cabaça coberta de contas, chamado nessa organização carnavalesca de
“Afoxé”. O estandarte é belo e vistoso, ricamente bordado e decorado,
conduzido pelo dançarino, tendo à frente o “Boneco” ou “Kalunga”.
As composições musicais eram as “cantigas fracas”, sem o poder de
provocar manifestações como as “cantigas fortes”, vedadas à execução
pública. Cuidado que minha Mãe Menininha teve ao ser consagrada como
madrinha dos Filhos de Gandhy, fornecendo-lhes o repertório apropriado
para a rua nos dias de carnaval. Mais tarde, surgiram os compositores
que, abordando a temática mítica do candomblé, sem falar dos
“fundamentos”, comporiam no ritmo do ijexá um repertório para os
desfiles e ensaios. Nos dias atuais, a temática tornou-se mais livre,
sem, contudo, ultrapassar os limites do que pode ser cantado ou
pronunciado em via pública durante a folia.
Ao contrário dos tempos antigos, já se usa a amplificação dos tambores e
das vozes através dos “carros de som”, em virtude do grande volume de
foliões, principalmente nos Filhos de Gandhy. Não se têm notícias, ao
menos nas tradicionais entidades, da utilização de instrumentos musicais
eletroeletrônicos, a exemplo de guitarras, baixos, teclados etc.
Jaime Sodré é mestre em Teoria e História da Arte,
doutorando em Educação e Contemporaneidade e professor da Universidade
do Estado da Bahia.
Publicado na edição 55, de fevereiro de 2014
Carta Capital